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diário-fantástico

[em construção infinita]

 

 

01/01/2022

O morro em chamas e o céu vermelho de fogos

Virou o ano e o céu fazia-se estremecer de todas as cores possíveis: deste lado do Morro dos Cabritos não víamos os fogos mas todo o eco de nuances das suas explosões. Laranja, rosa, neon, as nuvens cobriam as estrelas e por isso as cores ficavam chapadas no céu, como tons pastéis sendo colocados camada a camada numa pintura em processo. Ficamos observando aquele espetáculo da nova noite colorida, debruçados na janela, já com duas garrafas de champanhe na cabeça. Foi quando Rudah me contou sobre uma certa madrugada em que acordou subitamente e, ao olhar para fora, viu o céu laranja como nenhum pôr-do-sol jamais revelou. Correu para a janela da sala, essa mesma em que estamos agora, vendo a noite alaranjar-se, mas daquela vez era o morro que pegava fogo, com toda a sua extensão verde em chamas. E assim refletia o céu, planície rubra flutuante, que espelhava aquela infeliz alucinação. Mas aquilo não era sonho; fosse sonho o morro não teria acordado transfigurado e rancoroso dos balões que de vez em quando ali caiam porque desistiam do pouso final. Fiquei imaginando o tom quente do morro em chamas. Mas agora, apesar de ocupar a vista, não era ele o protagonista da cena, e sim coadjuvante daqueles tantos outros fogos que não chegamos a ver. Só nos restava o resquício sonoro das explosões e a transição suave feito luz de led no fundo da tela. Outra madrugada, outro fogo a queimar. E, enquanto o céu se incendiava e fazia nosso réveillon um pouco mais bonito, ele me olhou e disse:

- Todo final de ano olho para o céu e acho que é o fim do mundo.   

 

02/01/2022

A dança da chama da vela

Entro na banheira um pouco fria pois está quente (deve-se tomar banho de banheira gelada?). Acendo algumas velas para que me acompanhem ao som de composições contemporâneas para piano. A vela mais a esquerda, baixa e gordinha, contém uma chama desproporcional para o seu tamanho, mas aquilo não me assusta. Ao contrário, fico hipnotizada pelo seu balanço, sua variação de frequência. Não há vento que a mova, só há a música ecoando pelo banheiro de minha sogra. Fico ali, eu e a chama, dançando algumas melodias. Não é a toa que o fogo foi a primeira tecnologia mediada pelo homem. E também não é a toa que a maioria de nós somos essencialmente pirotécnicos, meu pai com a churrasqueira, Pedro com a fogueira, minha tia com a lareira, eu com a vela. O fogo talvez seja a maior das invenções da alquimia e da hipnose... Com um suspiro apago a vela antes que ela chegue perto demais. 

 

03/01/2022

O buraco no céu

Estamos voltando de um mergulho no Leblon quando, parados na sinaleira da passarela do Jardim de Alah, vejo um buraco no céu que engole a cabeça de Santiago e, junto a ele, está os Dois Irmãos. É uma redoma de nuvens que fazem um círculo perfeito e enrolam como um cobertor essas majestosas montanhas. Veio a calhar que Santiago estava ali, no meio, e com elas foi-se junto para o olho do furacão. De longe abanei a despedida, quando já pedalávamos em direção à lagoa, daquele buraco no céu de onde com certeza desceram e subiram coisas. Felicidade é ainda ter a companhia de Santiago ao meu lado.

 

04/01/2022

Eles chegaram

É início de noite, caminho em direção ao Bar dos Marujos para tomar uma cerveja. Algo chama atenção. Um óvni neon, piscante, iluminado, feito DJ, corta a rua. Dá um rasante, tão rápido como a luz que emana, e ali para, estaciona, na frente de um prédio da rua Bulhões de Carvalho. Os boatos que correm é que algum porteiro, todo final de ano, monta a tal da espaçonave extraterrestre como parte de sua própria memória afetiva de infância. Tenho vontade de entrevistá-lo. Estou encantada com esta aparição estética. Penso que nunca gostei tanto da minha rua quanto gosto agora.

 

05/01/2022

Uma pipa na praia da barra

Quase sempre que vou a praia da Barra fico duvidosa da escolha e das possíveis situações futuras; reduto bolsonarista de águas caribenhas, é um misto de alívio e sufoco olhar para o lado, para as pessoas, e pensar no que elas pensam, como se relacionam com aquele mar maravilhoso e em quem votaram, admito que fico confusa e sempre com um pé atrás pronta para fugir. Mas a lembrança daquele mar todo lindo e a proposta de um pôr do sol depois de alguns dias de quarentena - por ter entrado em contato com pessoas positivadas para covid-19 (já 22?) – me arrastaram até a beira. Muitas nuvens cobriam o céu e a esperança de uma luz alaranjada se desfez em segundos. Os primos crianças brincavam na água com uma mórei e tudo estava muito calmo, até calmo demais. Cortando as nuvens uma pipa, alta, alta demais, como pode uma pipa voar tão alto? A linha transparente não deixava pistas de seu condutor, muito menos do trajeto entre o céu e a areia. Mas voava, de um lado para o outro, como as crianças na água, independente e sem adultos chamando atenção. Sua superfície pipística reluzia, lá no alto, como um espelhinho, um feixe alaranjando daquele por do sol escondido, como se contasse um segredo por trás das nuvens maciças. Uma toda matemática entre a velocidade do vento defletido e a velocidade do sol refletido. Hipnotizada estava eu com esta outra forma de admirar o fim do dia. Ao meu lado, um menino semi-nú puxava a linha rapidamente como que recolhendo a pipa para ir embora.  Agradeci com os olhos, tentando reter a memória visual daquele pedaço de sol que iluminava a praia de outro jeito, e assim até os bolsonaristas sumiram...

 

06/01/2022

a amizade com o linguado

Gosto muito de peixes e estou com muita saudade de mergulhar. Era uma prática recorrente de minha família as viagens de snorkel, as paisagens do fundo-raso do mar, o encontro com estes seres aquáticos que poderiam muito bem ser meus amigos. Da viagem a Fernando de Noronha restaram apenas fotos de 3 pixels do celular nókia de abrir que meu pai tinha, já que a câmera “a prova d’agua” que minha mãe tinha levado estragou no primeiro mergulho. Impregnado ficou na minha memória um quase-ataque de uma enguia a minha perna, carnuda e saborosa de criança, que nenhuma câmera poderia ter registrado. O que marca verdadeiramente é o medo. O susto embaixo d’agua e a cena de filme de terror que se passou pela minha cabeça imaginosa ao ver os dentes afiados da cobrinha filha da puta saindo de sua caverna. Gosto muito de peixes, mesmo assim. Caminho pela praia de Ipanema pós tempestade. O dia cinza e o mar prateado compõem uma paisagem turva, melancólica, pouquíssimas pessoas que passam correndo por mim – quem corre na areia? E eu que sigo a passos lentos neste exercício do imaginário de um cenário comum e recorrente a mim. Melhor que praia lotada de verão com sol é uma praia nublada de inverno sem ninguém, sempre diz meu pai. Então caminho traçando um caminho pela areia molhada. O mar é calmo, como esses de verão, e essa maratona de chuvas fez com que no limite com o mar se formassem pequenas banheiras, piscininhas, retroalimentadas pelas ondas que ali passam, e que trazem também pequenos seres a brincar no raso. Lembro das viagens de mergulho e projeto-me observando esse fundo de mar. Um pequeno linguado aparece nadando em linha reta, vindo em minha direção. Me olha de lado – os linguados são assim engraçados, com corpo de superfície lateral, sempre fazendo a esfinge – e se aproxima, acanhado mas curioso. Os peixes são muito curiosos! Lembro que num outro desses mergulhos, no mar cristalino de Cuba, fui sendo guiada por um cardume de peixinhos pequenos e de muitas cores até algo que borrifava e que curiosamente concentrava muitos outros peixinhos, parecia um peixão, algo que estava morrendo e se decompondo ao vivo, assim, trágico, mas ao chegar bem perto me dei conta que se tratava de um falo murcho e mediano de algum nudista que estava alimentando os peixinhos com pedaços de pão em uma garrafa furada de plástico.  O linguado era um pouco mais esperto, me olhou de lado e manteve sua distância, até que se empolgou e começou a travar uma corrida comigo. A rasante formava uma linha na pequena piscina e eu corria feito menina no jardim de infância com meu novo amiguinho, o peixe linguado. Ouço uma trilha sonora meio cômica, um trombone que sobe e desce, enquanto tento pegar o linguado para passar a função do pega-pega para ele. Então ele para, fica imóvel, e me olha fundo nos olhos. Em questão de segundos, me dá as costas e, no aproveitar de uma onda que retorna ao mar, corre mar adentro, deixando-me ali, desolada, com saudade do meu amigo linguado e de com ele mergulhar.

 

07/01/2022

Matemática dos pássaros

Vocês já pararam para desenhar a fórmula matemática que fazem os pássaros pretos quando migram no céu? A revoada que dá pistas falsas das coordenadas do seu destino, confundindo os predadores para que nunca encontrem o seu verdadeiro lugar de reprodução. 

 

08/01/2022

Fantasia

Não é preciso ir à Disney para ver a cena de Fantasia se desenrolando no calar da noite. No Bar dos Marujos, na Rua Bulhões de Carvalho, todas as noites, por volta as 01 da manhã, baldes e baldes são enchidos e neles postos sabão, espuma branquinha que é despejada no chão de pedra, já com as cadeiras todas sentadas a mesa. As vassouras, em conjunto rítmico, começam a esfregar o chão e limpar todos os rastros de cerveja caída, as baratas que fogem da água e daqueles seres inanimados que agora ganham independência e movimento. O resto da história todos sabemos. E pelas dez da manhã, o bar que reabre com as vassouras guardadas e as cadeiras nos seus devidos lugares, como se nada tivesse nunca acontecido.

 

09/01/2022

Inhozinho

Leio o Livrinho dos Abraçinhos e Galeano escreve um textinho todo no diminutivo engraçadinho sobre uma criançinha muito espertinha que responde ao paizinho uma gracinha assim, pequenininha, e todos nós rimos muitinho depois de eu ler em voz alta. Como só chove no Riozinho de Janeirinhos estamos dentro de uma caverninha na Prainha, brincando de eco e fugindo dos pinguinhos chatos que molham meu livrinho. Os carioquinhas não vão a prainha com chuvinha, imagina. Mas nós sim, que não somos destas terrinhas, não nos importamos com os tais pinguinhos. É esta uma alternativa aos dias assim: colocar tudo no diminutivo para tentar apreender as situações em suas infimidades, infinitas, cada vez menores, até que já nem existam mais pinguinhos nem chuvinhas e só inho.

 

10/01/2022

A musculação pela pedra

Clint Eastwood responde a um amigo que aos 91 anos irá começar a filmar um novo longa, e esta pessoa lhe pergunta como ele consegue, e ele responde que todas as manhãs ele acorda e manda para fora o velho. No meio das avenidas movimentadas, um velho sobe e desce uma pedra com a mão esquerda, fortalecendo o bíceps. É uma musculação pela pedra: por flexões; para aprender da pedra, levantá-la; captar sua força inenfática, impressoal (pela de flexão ela começa as aulas), de vida. A lição de moral, sua resistência dura ao fitness, a ser torneada; a de ginástica, a sua carnadura concreta; a de fisiculturismo, seu adensar-se compacto; lições da pedra (de fora para dentro, resistência muda), para quem levantá-la.

 

11/01/2022

Marina de modelos do Fundão

Na escola de arquitetura é comum que os estudantes sejam encorajados e testados a fazer maquetes e modelos de suas estruturas, mesmo que agora em 3D. Flutuam no meio da Baía de Guanabara mais de cem modelos de barquinhos, de materiais variados, provavelmente de alguma turma da engenharia do Fundão. A marina, contudo, é mais do que um exercício de sala de aula: está ali, viva e existente, habitada por garças e pássaros menos que pousam para descansar em seus barcos particulares. Adorado conglomerado de mini barcos de brinquedo, a marina imaginária tem função de estacionamento, e está organizada pelas distâncias entre as falsas âncoras e boias que impedem um caótico choque. Fico imaginando insetos e pequenos mamíferos fazendo morada no interior destes modelos, ou mesmo um gastrópode que encontra no convés de isopor um aconchego muito mais interessante do que qualquer concha. Bonito este fazer modelo e tornar a ideia em realidade, em materialidade exposta, vivida em outras dimensões. É por essas e outras que já não se formam mais bons arquitetos como os de antigamente.

 

12/01/2022

Caravanas nebulosas

Lá no fim do mundo vê-se formar no horizonte caravanas nebulosas que se assemelham aquele quadro surrealista que viralizou na internet porque brinca com nossos sentidos. Lá no fim do mundo não sabemos mais quais sentidos dão sentido ao corpo que nem virtual é ou mesmo se podemos confiar em nós, nesse corpo, enquanto avançam as caravanas nebulosas em nossa direção, talvez para nos colonizar. Aqui no fim do mundo as nuvens parecem qualquer coisa menos nuvem, descrevem o terror do apocalipse em tons verde-esmeralda, anunciando o fim do mundo que já chegou. No fim do mundo correm sem perder tempo as nebulosas caravanas que um dia soubemos ser pintura para dentro de meus olhos imbuídos de tela até que a vista seja só nuvem. 

 

13/01/2022

Voar

Andar de avião só pode ser coisa de louco. Santos-Dumont que me perdoe, mesmo pela sua linda vista no momento do pouso: passar voando por uma coletânea de nuvens brancas carregadas de água, aquelas cumbulus nimbus que meu vô me ensinou a ler como “vai chover”, dá um tal arrepio na espinha que só os mais corajosos e confiantes na máquina de voar ficam tranquilos. O banco que sacoleja e parece que vai cair a qualquer momento, enquanto na janelinha o nada, o vazio, o branco, o meio da nuvem, a paz, o anjo, o silêncio, por favor mantenham os cintos de segurança afivelados estamos passando por uma zona de turbulência. É uma batalha entre o medo e o maravilhamento daquela encruzilhada que o piloto passa assim, reto, como se não estivesse nem um pouco preocupado com a possibilidade de algo ali aparecer, no caminho, em que pudéssemos bater. Esses momentos do voo são os de maior tensão e pensamento. Talvez pudesse ser escrita toda uma filosofia apenas nestes intervalos de voo.

 

14/01/2022

Esportes aquáticos

Uma braçada cadenciada desenha no plano azul uma linha reta. Da esquerda, outra dupla de braços, cruz a vista, em direção oposta. Em um intervalo de cinco minutos já foram oito braçadas e vinte e quatro braços. No cansaço, um colchão irrompe o primeiro plano para designar um novo esporte aquático.

 

15/01/2022

Variações de luz e sombra

As amendoeiras são muito altas e fazem sombra em todos os apartamentos abaixo do quinto andar. À tarde, a luz penetra suas folhas e faz da calçada um enorme lusco-fusco, bom exercício do olhar.

 

16/01/2022

Arara do Diabo

No Diabo, praia escondida na ponta do Arpoador, sobrevoa uma arara. Uma arara azul que parece descolada de um filme de animação da Pixar dá rasantes nos banhistas, surfistas, milicos, peixes. Como é grande a arara! Me pergunto algumas vezes se a arara está perdida, se está louca, se está triste com a falta de um parceiro. Mas depois de tantos sobrevoos a arara pousa no ombro de um senhor e penso: só estava a passear. Como eu que trago meus hóspedes cachorros no Diabo ­­para brincar. Em outro plano, no pássaro n­­­ativo brasileiro só faltou coleira, pois adestrado já estava. Era bem uma arara do diabo, presa na repetição de voltar ao ombro do homem.

 

 

18/01/2022

A cor dourada

A cor dourada invade as folhas das amendoeiras na Rua Sá Ferreira e desenha um tapete de manchas sombreadas. No lusco-fusco da meia-tarde, a rua adquire uma estética persa, desse asfalto carcomido pela luz e transformado em um verdadeiro mosaico iluminado. Se o dourado vem do sol ou do reflexo dos mineirais do solo ou mesmo dos espelhos arredondados das entradas de garagem: uma cor tal que irrompe o próprio conceito de rua, de árvore, de luz, me cega os olhos e me faz ver pó de ouro, trigo ao vento, escultura em composição. A cor dourada me invade e faz de mim outra mancha solar estendida no plano das aparências.

 

19/01/2022

Os ecos da respiração da água (dos girinos)

 

20/01/2022

A muralha de areia

Tem certos dias na praia de Ipanema que é impossível ficar perto do mar. A maré sobe, sobe, sobe, até que adentra as barracas e molhas as bolsas cangas roupas celulares todos. O movimento natural é o de recuar, reposicionar o guarda-sol, e tentar mais uma vez uma estadia tranquila ao lado do oceano. Mas nesse dia estávamos em um grupo grande de pessoas dentre elas um engenheiro portuário que disse: - vamos construir uma muralha. Na minha cabeça passaram slides de imagens da época da escola, a terra compactada, os milhares de tijolos sobrepostos nas cadeias das montanhas chinesas, a invasão dos nômades que agora se transmutavam em ondas assanhadas de teor bem mais baixo de violência. Sem muito engenho, começamos a levantar nossa muralha de areia, alta suficiente para que as ondas ali batessem e não espirrassem. Cavar uma vala era importante, para amortecer o choque e, de brinde, formar um pequeno laguinho onde fortuitamente, em algum momento, iria ficar preso um peixe ou outro trazido pelo mar. Já tínhamos construído um forte, protegidos da maré que insistia em subir. Nossos vizinhos ficaram enciumados e logo trataram de construir a sua muralha; que era pequena demais e logo foi destruída. É necessária perseverança para construir uma boa muralha de areia. Montante a montante, intercalar areia seca e molhada, como cimento e cola, moléculas moles e duras para firmar. Depois o resto é sorte. Sorte que a onda não venha muito forte a ponto de engolir as laterais e fazer do lindo laguinho do amor um poço profundo de morte, por onde os invasores virão a nado. Sorte que algum ambulante ou criança maldita não pise na estrutura e a desfaça em um pisar. Mas perseverança, para vez ou outra reconstruir, para sempre estar a remontar.

 

21/01/2022

Descolorir a sobrancelha

Estamos sentados no sofá branco da sala quando digo:

- Não entendo muito essa moda de descolorir a sobrancelha.

Rudah responde:

- Colunista francês?

- Descolorir a sobrancelha.

Rimos um pouco da conversa descompassada e das palavras que soam parecido, quando ele completa:

- Cada um tem a sua sobrancelha.

 

22/01/2022

Linguagem a-gênero

João é um cara esquisito, meio ruivo, meio alto, está sempre vestido de branco para agradar seu orixá. Gustavo é bicho do mato, os cabelos pretos sob os olhos com um visual meio emo da floresta. Angelo é argentino, quieto, mas sempre preciso. Estávamos no estúdio no alto de Santa Teresa e falávamos do próximo disco de João, dos nomes das músicas, enquanto ouvíamos os arranjos para quarteto de cordas recém compostos por Rudah. Falávamos também dos sonhos que acompanhavam as letras e até do bumbo legueiro que dá ritmo à música final. João é carioca, mas gostou do soar do bumbo, que deu ainda mais sentido àquela violada em homenagem a Atahualpa Yupanqui. Foi depois da meia noite e de concluir aquele encontro crítico sobre seu disco futuro que começamos a falar de coisas outra, fofocas e política em geral. Gustavo, com seu pensamento esquerdo-liberar parecido às confusões de Caetano Veloso, problematiza uma nova lei do Canadá sobre a obrigatoriedade dos a-gêneros linguísticos como xs etc. Eu estava já quase lá dormindo mas com os ouvidos atentos. A questão é que a linguagem é cambiante e está sempre em mutação – como um aparato tecnológico cultural, vai se adaptando às demandas do tempo. Mas Gustavo insistia em colocar essa questão como uma imposição ideológica totalitária. Ah esses liberais de esquerda! Difícil entender. Eu particularmente não acho interessante essa nova utilização das palavras a-gêneras e acredito que nosso próprio português tenha saídas melhores para a não denominação de gênero – os verbos no infinitivo, por exemplo, que ainda possibilitam um lugar de potência e invenção para a frase. Esses tempos escrevi um roteiro para pessoas x e y performarem e tive esse exato cuidado de não flexionar nenhum verbo no masculino ou feminino. Então o debate foi ladeira abaixo com as já 15 cervejas no estômago e as 3 horas da manhã batendo. Não havia jeito de convencer a importância desse tipo de extremismo para as mudanças culturais por vir – duvido que daqui 100 anos tenhamos no dicionário português estas flexões agêneras, mas espero que até lá tenhamos aprendido a chamar as pessoas do jeito que elas querem apesar do seu aparente natural sexo. A menina trans Linn que tem tatuado na cara um ELA e que está agora no BBB. Enfim, quem seríamos nós mulheres hoje sem as sufragistas radicais e todo um movimento feminismo agressivo necessário para as conquistas que hoje nos são tão naturais? Talvez por ser homem nada disso faça sentido para ele. E também dar um voto de confiança para a linguagem, ora bolas, dar-lhe um pouco de independência! Pois ela é mutante por natureza e, com certeza, terá destreza para elencar o que importa para sua beleza.  

 

23/01/2022

Ingerir a substância

 

24/01/2022

Os catadores de mexilhão (Homage aos Os catadores da agnes varda)

 

26/01/2022

Um jantar suspenso

 

21/02/2022

A incapacidade tecnológica de capturar as nuances do céu

 

22/02/2022

O empalhador da Bulhões

 

23/02/2022

As mãos invisíveis do capitalismo (a privatização do carnaval)

 

25/02/2022

McBeth

 

27/02/2022

Redemoinho de andorinhas

 

01/03/2022

Conversas paralelas 1

Caminho lado a lado com um casal de meia idade que conversa de forma exaltada sobre o trabalho. Como um relâmpago, ouço-a afirmar:

- Eu não ganho pra lembrar, eu ganho pra somar.

 

04/03/2022

Buenas ideias

A variação térmica é um fenômeno físico bastante visível e comumente notado sob circunstâncias controladas, em ambientes aptos e matérias preparadas para receber tal variação. O pensamento, por exemplo, não é um lugar propício para este tipo de alteração. Mas o fato é que dia destes vi sair fumaça da cabeça de uma querida amiga, durante um banho de cachoeira. Do topo do seu crânio jazia a mais pura variação térmica, como se fervessem os neurônios em buenas ideias, um tunelzinho entre o lóbulo direito do cérebro e o ar úmido externo, que convertia aquele processo criativo em fumaça, densa e leitosa fumaça. Perguntei o que pensava, e ela respondeu: em nada, por quê? Porque sua cabeça está pegando fogo mas não vejo chamas, e você está com um sorriso bobo no rosto. Porque talvez você esteje fritando memórias e daqui um tempo não poderá localizá-las. Porque eu gosto de você assim, pensante, e ver sair fumaça da sua cabeça me fez esquecer da variação térmica do encontro da água gelada dos seus cabelos sob o calor dos raios de sol. Meu silêncio ecoa como palavras e ela o toma por satisfeita, enquanto a fumaça vai ficando rarefeita, cada vez menos visível, até que desaparece no ar. Voaram os pensamentos que, por um instante lúcido, pude constar, contar, medir, vislumbrar, saindo do corpo e indo ao espaço. Talvez tenham viajado àquele lugar metafísico da razão em que nem a variação térmica vale mais, e só o sopro de ideias constituem uma verdade, um número, uma vertente. Jorram fortes as águas da cachoeira que batem na cabeça e fazem expulsar tudo que está transbordando. Pronto, agora que esfriou, há lugar para novos pensamentos.

 

06/03/2022

As moscas suspensas

Durante o verão, caminhar na rua é sinônimo de esbarrar com algumas moscas suspensas. A mosca varejeira voa parada no ar, como o beija-flor. Ela fica ali, olhando com seus olhos 360 multifacetados, analisando a gravidade e os índices de poluição do seu entorno. Sua cor azul-verde-metálico chama a atenção, e é impossível não notá-la flutuando no meio da passagem. São perigosas e fazem do corpo quente, pulsante, um hospedeiro. Por isso melhor desviar quando de encontro a elas.

 

08/03/2022

O carregador (carregando pela coleira um armário pequeno e no ombro um esfregão)

 

09/03/2022

A praia das gaivotas

No rio de janeiro há uma praia impossível de se pisar. Um cabo jovem tem a função de ficar sempre à espreita, carregando um cassetete, daqueles que ousam ultrapassar a linha invisível que divide a areia pública e a areia militar. Um dia perguntei a ele se podia passar, e ele disse que não. No Rio de Janeiro há uma faixa de areia livre e desabitada, sedutora, uma praia vazia dando bobeira, como odeio os milicos. Lhes ensiam que territórios devem ser riscados, tomados, restritos, e assim determinam mares e areias privadas “só para os generais”, “só para o agrado da vista do comandante que fica no Forte de Copacabana olhando sua praia deserta”, como demonstração de poder fálico e estrutural. Mas a maré desce e convida à passagem, todo dia, enfrentando os domínios e as linhas traçadas. A resistência da natureza aos limites geopolíticos impostos. Sob minha revolta íntima e particular explodem os desejos de ultrapassagem, de forçação de barra, de cuspir no pé do cabo e cruzar a tal linha correndo até me perder na imensidão da praia e meu corpo nú tornar-se invisível suficiente para que não me possam localizar. Observo um grupos de gaivotas que dão rasantes nas ondas e nos surfistas, brincam livres caçando peixes e, quando cansadas, pousam ali, seus pezinhos marcam a areia e trilham uma passagem invisível ao olhar do subcomandante. É como se fizessem dali também sua praia privada. Tenho inveja das gaivotas. Por voarem, mas principalmente pela sua total liberdade de não pertencer à raça humana. Talvez se eu tivesse seus pés pudesse entrar. Botinhas trípticas como máquinas de guerra, para invadir na calada da noite e repousar, até que nasça o sol e eu tenha que desviar verticalmente da enchente de cabinhos que vêm correndo em minha direção para me retirar. Imagine que um híbrido mulher-gaivota possa passar. Resta-me, somente, olhá-las de longe, e levar aos meus sonhos a chance de, alguma noite, me banhar na praia das gaivotas.

 

10/03/2022

S-A-S: repetição tiktoke

 

11/03/2022

Bem-te-vi e o menino da bala

 

12/03/2022

Taichichuan

 

13/03/2022

Maria Angélica Ribeiro

Vez que outra na semana subo a pé a ladeira da rua Maria Angélica. É íngreme, apesar de asfaltada, e sempre faz com que minhas batatas da perna gritem escandalosas (ATO I). Subo a passos lentos, mas perseverantes, ora carregando a bicicleta ora só meu corpo sob o sol escaldante do fim da manhã ou do começo da tarde. Maria Angélica foi a primeira mulher brasileira a ter uma peça encenada no teatro. Fofocas imaginárias (a meia-voz) das senhoras residentes da charmosa casa da esquina que ali residem desde 1800 atravessam meus ouvidos estrangeiros, sussurram que Angélica era doida, descompensada, e que se casou aos quatroze anos com seu professor de desenho. (ATO II, Atravessa uma bicicleta na contra-mão). Sigo a subir e, no topo da vista, a imensidão de Cristo abre os braços para minha chegada (ATO III): como que abençoado, abre-se um clarão de amor para a vida toda, desta paixão que desde o princípio me dá forças para subir, e que está à minha espera, cultivando um beijo como recompensa. Faço aos pés de deus meus próprios pés subintes, ouvintes das janelas entreabertas do tempo (o desejo de tornar-se enciclopédica como uma abelha que adentra as bibliotecas vizinhas, ATO IV). Dos sulcos verticais da ladeira, já chegando ao topo, ressoa a dramaturgia: um beijo, ou uma flor: escolhe. O amado (apresentando a face, lá de cima da janela do quarto andar), Venha o beijo. Chego ao cume e, ao encarar a potência de amar no quarto andar, me dá vontade de fazer uma serenata; mas meu pensamento é interrompido por uma máquina barulhenta que despeja asfalto quente e líquido pela rua (ATO V), tapando buracos e também a memória soante de Maria Ribeiro, impregnada no asfalto. (Vai a janela). Estou ofegante. Olho para baixo e não vejo Angélica; estou em outra rua. (ATO VI) Aperto o interfone.

 

14/03/2022

Trabalha-se com: empalhador, construtor, ilustrador

 

16/03/2022

Performance no segundo andar do prédio 56 na Rua Joaquim Selva, na Lapa

Dois corpos pretos estão deitados junto a parede do fundo, as colunas dobradas na lombar ou cervical. Com os olhos fechados descansam, mesmo sabendo que estão cercados de gente que os observa. Mais um corpo adentra a sala e depois outro, fazendo conjunto com os anteriores feito uma imagem daquelas corriqueiras de quem passa na rua em frente a um edifício em obras durante o horário do almoço. Os quatro corpos pretos descansam sem descanso: no sutil movimento de um o outro já responde, na busca de um conforto pela espinha dorsal ou pela carne mole da bunda ao lado. Estão à procura e à espreita, concomitantemente, ao passo que se deslocam, sempre muito próximos, centímetros, poucos metros, no limite entre o corpo e o chão. O repouso frágil dos minutos contados dá lugar a um sono rodopiante recheado de sonhos e pesadelos: na escalada do vizinho, vão fundindo-se os corpos pretos em um só preto e outrora roupa, rostos fundidos pela respiração profunda de total entrega ao vizinho. Uma montanha de quatro surge em nossa frente e logo desmorona ficando só dois. Um arranha-céu vivo de gente meio acordada meio dormida vai se formando sob o empilhamento de corpos sonâmbulos, interessados. Estão interessadas as quatro cabeças no próximo movimento do pé, da mão, como jogo de capoeira, para uma resposta precisa, descalculada, e então a escultura mutante que vai se esculpindo pelo ato de empilhar. Um acorda. Começa a saracotear pela sala, os passinhos finos como que sambando, pulando, olhando nos olhos da gente. Pouco a pouco a maçaroca torna-se vertical e estão os quatro corpos pretos dançantes, vivos e enérgicos, cadenciando um ritmo individual que sempre remonta o coletivo. O quase batendo de seus movimentos, tão perto que dói, ao mesmo tempo bruscos e delicados, dá aflição, mas estes corpos antes aglomerados têm como que uma barreira molecular que diante o choque criam, distendem-se de suas próprias mãos, dobram-se para compor quatorze dedos. Saltos, quedas, palmas agudas que reverberam pela sala, enquanto gemidos tipo balbuciando canções parecem entoar uma felicidade conjugada, comum, dessa letra que não sei qual é mas canto mentalmente. Um soar animal destes roncos, grunhidos, expulsões de ar, intensos ritmos que abalam o limite entre o corpo e o pensamento. O meu e o deles. Já não somos um? São acordes de carne que preenchem o pequeno vazio entre si e gigante dentro de nós. Como um próximo ato, neste limite do deslocamento entre o orgânico e o inorgânico, o andar de cima e o de baixo, não mais interessa o chão, e sim o céu: alçam-se no ar como cometas, como múltiplos jesuses quando levantados até a cruz, como carregam-se os mortos entre as trincheiras nas guerras, como tantas cenas históricas deste corpo preto que logo sobe e tão cedo cai. E então o colo. Carregam-se entre si em um abraço longo que nos é compartilhado: seguro um menino cansado, suado, que vem a repousar em meus braços como se fizesse parte daquele acordo performático. Um acordo silencioso e sem cláusulas entre corpos dispostos em uma sala, entre o preto e o branco, entre quem repousa e quem assiste, quem dorme e quem sonha. Os quatro corpos tombam no chão direto do colo, e sinto falta do seu aspecto quente contrastando com minhas mãos quietas e vazias. Mas logo a sua pele que reencontra minha orelha, o lóbulo esquerdo que antes carregava uma argola de ouro de minha infância que já não tenho mais: está no bolso de um deles. As chaves, celulares, tênis, mochilas, os colares, as carteiras, os pertences de cada um da plateia são calmamente retirados, removidos, trocados, ou guardados por aqueles que antes ali estavam, como infantes, repousando sob o peito desconhecido. Deixo que vistam minhas coisas porque ali parecem pertencer; talvez uma extensão de mim que agora faz parte do conjunto, da maçaroca de corpos esculpindo o espaço. Mas, subitamente, um nó no pensamento, diante desta última imagem comum aos olhos de quem caminha na rua: estão os quatro corpos pretos em pé, voltados para a parede aos fundos, com as mãos e pernas abertas e elevadas, prontos para uma abordagem policial. O público olha-se nos olhos e se pergunta silenciosamente: é esse o nosso acordo final? É este o nosso último gesto? Minha bunda cola na cadeira. Suo frio com a possibilidade do ato. Sinto saudade dos meninos sonâmbulos e tenho vontade de perguntar o que sonhavam enquanto rolavam-se entre si. Mas seguem lá os quatro, parados, com as pernas abertas, algumas pessoas caminham até eles e retomam os seus pertences. O tempo suspende na dúvida e a história parece desmoronar sob um carrossel de imagens noticiárias, lembranças de cenas de violência que correm pela cabeça. O tempo parece estanque... e só volta a andar de novo quando os corpos descansam e saem da sala, a passos largos, sob uma chuva de palmas e a felicidade compartilhada dos olhos de quem viu, de quem vê, minha argola que se foi com algum deles e nem vi passar. Quero sair correndo também porque não cabem palavras em minha boca.

 

17/03/2022

Muro de amores

Na vista chinesa, há um muro entalhado com nomes de casais.

 

20/03/2022

Luzes da cidade (a poluição luminosa)

 

22/03/2022

Sinfonia dos cães

 

24/03/2022

Surdices 1

Olha o ratão!

(Escuto: o latão)

- Voando?

 

27/03/2022

Filosofia na praia

Hoje quem já fez bidiu?

Difícil quando falamos de palavras que a gente não conhece, né? Bidiu é alegria, um sorriso, é o que a pessoa expressa durante o pensamento do que pode vir a ser bidiu. Nasce um conceito. Nasce um produto. A regra de experimentação: a primeira palavra que sai da boca depois da mordida é a essência de bidiu.

Na embalagem, lê-se: BeeJooh!Impacto. Doce de Leite.

 

28/03/2022

Surfista que sai da água gemendo feito um cachorro no cio

 

29/03/2022

Luciano Hulk tem 3 pavões azuis em casa.

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